Era o fim de mais um dia ensolarado. O sol se despedia no horizonte anunciando mais uma noite desértica. A pele suava e colava às grossas mantas, gerando desconforto. Tudo parecia transcorrer tranquilamente quando, de repente, a rotina se estilhaça.
Alguns homens surgiram subitamente arrastando uma mulher. Ela estava esfolada e sangrando. Chorando e sem forças, ela clamava em desespero por compaixão! Compaixão!
Quem era a vítima? Uma mulher pega em flagrante adultério. Foi arrancada da sua cama com violência. Esbravejavam com o homem que dormia com ela, mas o deixaram livre. Que injustiça!
Hasteando a bandeira do moralismo, os carrascos da mulher a arrastavam e bradavam: "Prostituta! Prostituta! Você contamina nossa terra! Merece a morte!". Os sentimentos de solidariedade diluíram-se no radicalismo religioso.
Atrás dos algozes um cortejo de homens furiosos, como se todos fossem puros e não tivessem conflitos. Queriam exorcizar os fantasmas interiores que os assombravam, mas, como não os enfrentavam, projetavam esses fantasmas na mulher desprotegida, tentando espantá-los.
Gritavam: "Apedrejem-na! Apedrejem-na!". Alguns sacudiam o pó dos pés, outros cuspiam na vítima. Ao longo da história os piores inimigos de Deus sempre foram seus defensores radicais.
Era possível prostituir-se na mente, nas intenções, nas ações, mas não
fisicamente. Era aceitável estar infectado por dentro, mas não era admissível uma demonstração exterior. A sociedade era e sempre foi hipócrita!
A biografia masculina tem uma dívida impagável com as mulheres. Os homens
sempre foram o sexo frágil, pois só os frágeis usam a força. As mulheres sempre usaram
mais as ideias e a sensibilidade. Por isso esse misterioso Deus chamou uma mulher para
cumprir uma missão que milhares de homens não conseguiriam.
Ao apedrejar publicamente as mulheres adúlteras, os radicais religiosos queriam que a doutrina do medo se infiltrasse como chamas de fogo no inconsciente coletivo, reprimindo comportamentos.
A multidão se aglomerou. O ritual começou. A mulher protegia o rosto. As pedras começaram a ser atiradas sem piedade. Os músculos eram lesionados, os ossos, quebrados, o sangue era sorvido pela terra. Cada minuto era uma eternidade de dor. As mulheres queriam protegê-la, mas, se o fizessem, teriam a mesma sorte. Chorando, assistiam à agonia de sua semelhante.
Nenhum homem perguntava se ela sofrera crises e vivera pesadelos existenciais. Não a consideravam um ser humano, mas uma adúltera que deveria ser exterminada do mapa da existência.
Não havia idade mínima para assistir a essa brutalidade. Muitas meninas, agarrando-se às vestes de suas mães, choravam ao ver a dor da miserável mulher. Entre elas havia uma pequena garota que cobria seu rosto com as mãos, mas deixava escapar por entre os dedosflashes da cena da mulher que agonizava.
Seu nome era Maria. Como todas as outras meninas do seu tempo, ela deve ter assistido a diversas cenas como essa. Causava-lhe arrepios pensar em um dia cometer o mesmo sacrilégio. Como toda criança, é provável que a pequena Maria tenha perdido o sono relembrando os gritos e as cenas terríveis que vira no dia anterior.
Sartre, como Freud, acreditava que nos primeiros sete anos de vida arquivamos algumas experiências emocionais reprimidas, nas quais temos dificuldades de colocar para fora. Dentro de nós há uma criança que exige reparos por tudo o que viveu.
A pequena menina cresceu. Tornou-se uma jovem vivaz, instigante, estava com cerca de 15 anos. A cultura de seu povo e as dificuldades de sobrevivência da época faziam as mulheres amadurecer mais rápido e assumir compromissos sociais mais cedo. Mas Maria ainda era uma adolescente.
Como muitas jovens de sua idade, já estava noiva. Na cultura judaica, o noivado era tão sério como o próprio casamento. Estava prestes a finalizar o ritual do casamento, mas não havia mantido relações sexuais com seu futuro marido, José, um carpinteiro sem grandes posses, que carregava pesadas toras e as lapidava para sobreviver. Tinha as mãos calejadas pelos atritos das ferramentas que usava e a pele ressequida pelo calor do sol. Era um homem acostumado ao trabalho pesado.
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